quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Análise de Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra



A percepção da paisagem cultural em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra



O RIO COMO ELEMENTO DE IDENTIDADE CULTURAL

O aspecto cultural no uso e na percepção da paisagem depende de fatores distintos: experiência, atitudes conscientes, comportamentos inconscientes, sentimentos e subjetividades. Na obra Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, o “elemento rio” assume importâncias tanto geográficas quanto simbólicas: primeiramente, ele delimita a separação entre a ilha e a cidade. Esta separação não é apenas territorial, mas também, cultural. A saída e, posteriormente, o retorno do personagem Mariano à ilha gera conflitos acerca de sua identidade cultural:

A separá-los, apenas um rio. Aquelas águas, porém, afastam que a própria distância. Entre um e outro lado reside um infinito. São duas nações, mais longínquas que planetas. Somos um povo, sim, mas de duas gentes, duas almas (COUTO: 2003, p. 18).


Esta distância representa dicotomias: progresso x atraso; tradição x modernidade. O personagem Mariano representa a dúvida, a busca pela auto-afirmação. Representa a necessidade de conhecer-se a si mesmo, de estabelecer raízes com um lugar específico.
Com relação a aspectos simbólicos, o rio é local de acontecimentos emocionalmente fortes, é o símbolo de uma população que atribui valores mitológicos, ritualísticos e sagrados a ele.
Os fatos importantes estão presentes em diversos personagens da narrativa. A cada um o rio atribui significado. Com a personagem Mariavilhosa, o elemento assume um ciclo de vida e morte, afinal o início e o desfecho desta encontram-se no rio. Na verdade, segundo os familiares da personagem, ela apenas retornou ao local de origem:

Talvez se tivesse transformado nesses espíritos da água, que anos depois, reaparecem com poderes sobre os viventes. Até porque houve quem testemunhasse que, naquela derradeira tarde, à medida que ia submergindo, Mariavilhosa se ia convertendo em água. Quando entrou no rio seu corpo já era água. E nada mais senão água (...) água era o que ela era, meu neto. Sua mãe é o rio, está correndo por aí, nessas ondas (COUTO: 2003, p.105).

A trajetória de Mariavilhosa e Fulano Malta teve início no rio, e o fim foi o encontro até ele. Outra característica que deve ser ressaltada é a atribuição do “elemento água” a algo primordial. Este caráter remota ao pensamento do filósofo Tales, que acreditava que a água era a origem e a foz de tudo. É o termo último das coisas, é o sustento das coisas. Este princípio é aquilo do qual tudo vem, aquilo pelo que é, é aquilo pelo qual termina. É elementar, essencial e prossegue. No Dicionário de Símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant o rio assume a possibilidade universal e da fluidez das formas. Representa a fertilidade, a morte e a renovação. Para o personagem Dito Mariano, o elemento assume um caráter fértil e ritualístico. No caráter fértil, a paisagem encontra no amor a motivação para a contemplação do rio. O relacionamento amoroso entre Dito Mariano e Admirança tem sua concretização no rio, afinal, numa noite de lua nova, o personagem pede para dormir com a amada. Vale lembrar que o ato de dormir com outra pessoa representa a entrega da alma. O rio é o cenário, é o palco de um amor proibido. É a concretização da fertilidade, pois, após este encontro, os dois geram uma criança que, logo após o nascimento, foi nomeada de água, ou Madzi, na língua local. Este fruto é Mariano que após a revelação da sua origem, encontra sua identidade, conhece seu passado. Com relação à nomeação do personagem, pode-se perceber que houve a tentativa de perpetuar o amor. É o rio que não pode deixar de existir. Representa a conservação da paisagem cultural, um bem que era comum a todos da família. A herança deixada por Dito Mariano foi a paisagem. Esta ligação representa a formação da memória e da identidade, pois numa civilização onde a tradição oral e a cultura têm importância, a ausência destes fatores implica em morte. O rio é o elemento que participa destas relações pessoais, ele compartilha códigos, no qual o símbolo não é apenas um substituto de algo, mas também é um elo de memória e identidade.
O vínculo do personagem Dito Mariano com o elemento estende-se aos rituais de morte, pois seu enterro só foi possível à beira do rio. Numa das revelações ao filho, ele revela a sua síntese com o elemento. Síntese esta que também está presente no filho: “E agora lhe chamo outra vez de “água”. Sim, você é a água que me prossegue, onda sucedida em onda, na corrente do viver”. (COUTO: 2003. p.238). No tocante a aspectos culturais, o rio é sinônimo de costumes, das tradições africanas. O ritual representa a tentativa de preservar a paisagem cultural que deve ser contemplada pela população. Há a expectativa social de que o lugar assuma o papel de bem simbólico, não somente espaço funcional. Desta forma, o local assume a propriedade substutiva do símbolo, capaz de habilitá-los em evocar fatos, processos e relações sociais considerados relevantes à memória coletiva. Esta preservação atende à necessidade da identidade histórica e coletiva.

Ajoelha-se na areia e, com a mão esquerda, desenha um círculo no chão. Junto à margem, o rabisco divide os mundos – de um lado, a família; do outro, nós os chegados. Ficam todos assim, parados á espera. Até que uma onda desfaz o desenho na areia (...) estava escrito o respeito pelo rio, o grande mandador. Acatara-se o costume (COUTO: 2003, p. 26).


Outro caráter que revela a importância do rio na tradição oral é a existência de lendas que fazem parte da cultura local. Numa delas acredita-se que, em noites escuras, as grandes árvores das margens se desenraizam e caminham sobre as águas. Com o amanhecer do dia, elas retornam ao local de origem.
Porém, há um significado que merece destaque: a atribuição de valor que remonta à eternidade. Para o personagem Juca Sabão, o rio não tem começo nem fim, ele é o próprio tempo.
Queria subir o rio até a nascente. Ele desejava decifrar os primórdios da água, ali onde a gota engravida e começa o missanguear do rio (...) o rio é como o tempo! Nunca houve princípio, concluía. O primeiro dia surgiu quando o tempo já há muito se havia estreado. Do mesmo modo é mentira haver fonte do rio. A nascente é já o vigente rio, a água em flagrante exercício (COUTO: 2003, p.61).

A atribuição de valores ao rio depende de cada experiência vivida pelos personagens: a alguns é morte, renovação, é fertilidade. Porem deve-se destacar a importância que permeia toda a civilização africana: a paisagem é mais que um simples código compartilhado; é, antes de tudo, algo sagrado, ritualístico. É parte de toda a nação, é a memória e a identidade cultural que tentam preservá-la.

Por Juliana Belo







4 comentários:

Carol Rabelo disse...

Aí é nerd!

Anônimo disse...
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Carol Rabelo disse...

É nerd sim! E sou tua fã!

Anônimo disse...

Carol, que honra você ser minha fã... Também posso dizer que sou, afinal, trabalhar com toponímia é muito legal e exige muito estudo e conhecimento de história e cultura, minha linda. e nerd é tu!!!