sexta-feira, 7 de agosto de 2009

O caso D. Juan

Carlos no entanto, fumando preguiçosamente, continuava a falar na Gouvarinho e nessa brusca saciedade que o invadira, mal trocara com ela três palavras numa sala. E não era a primeira vez que tinha destes falsos arranques de desejo, vindo quasi com as formas do amor, ameaçando absorver, pelo menos por algum tempo, todo o seu ser, e resolvendo-se em tédio, em «seca». Eram como os fogachos de pólvora sobre uma pedra; uma fagulha ateia-os, num momento tornam-se chama veemente que parece que vai consumir o Universo, e por fim fazem apenas um rastro negro que suja a pedra. Seria o seu um desses corações de fraco, moles e flácidas, que não podem conservar um sentimento, o deixam fugir, escoar-se pelas malhas laças do tecido reles?

- Sou um ressequido! disse ele sorrindo. Sou um impotente de sentimento, como Satanás... Segundo os padres da igreja, a grande tortura de Satanás é que não pode amar...

- Que frases essas, menino! murmurou Ega.

(...)
Depois vindo plantar-se diante de Carlos, de monóculo no olho:

- Tu és extraordinário, menino!... Mas o teu caso é simples, é o caso de D. Juan. D. Juan também tinha essas alternações de chama e cinza. Andava á busca do seu ideal, da sua mulher, procurando-a principalmente, como de justiça, entre as mulheres dos outros. E après avoir couché, declarava que se tinha enganado, que não era aquela. Pedia desculpa e retirava-se. Em Espanha experimentou assim mil e três. Tu és simplesmente, como ele, um devasso; e hás-de vir a acabar desgraçadamente como ele, numa tragédia infernal!

Esvaziou outro copo de Champagne, e a grandes passadas pela sala:

- Carlinhos da minha alma, é inútil que ninguém ande à busca da sua mulher. Ela virá. Cada um tem a sua mulher, e necessariamente tem de a encontrar. Tu estás aqui, na Cruz dos Quatro Caminhos, ela está talvez em Pekin: mas tu, aí a raspar o meu reps com o verniz dos sapatos, e ela a orar no templo de Confúcio, estais ambos insensivelmente, irresistivelmente, fatalmente, marchando um para o outro!... Estou eloquentíssimo hoje, e temos dito coisas idiotas. Toca a vestir. E, em quanto eu adorno a carcassa, prepara mais frases sobre Satanás!

(Trecho de Os Maias - Eça de Queirós)
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Por Brenna, A Pata

2 comentários:

Ju disse...

Bem, sou super suspeita ao falar de Os Maias,pois é a minha obra favorita e o escritor é o meu primeiro amor. Por´me, adoro esse trecho, acho que traduz bem a ânsia de Carlos encontrar uma mulher. Gosoto ainda mais quando Ega afirma que a mulher ideal para ele está fatalmente ligada a ele e que os dois marcharão um para o outro. Mais bonito que isso, impossível.
P.S. Esse texto é a tua mais perfeita tradução, Brenna

Brenna, A Pata. disse...

Exatamente! Só vc, Ju, minha alma gêmea, pra me entender tão completamente! ^^

É um dos meus trechos favoritos dos Maias... nem preciso dizer por que!

=)